segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Teatralização-texto

         Como o sonho, o fantasma teatral admite a não-contradição, o impossível, e deles se alimenta, tornando-os não apenas significantes, mas operantes. O lugar da inverossimilhança é o lugar próprio da especificidade do teatro, à qual corresponde, na representação, a mobilidade dos signos, por exemplo, um objeto que passa de uma função para outra (escada que vira ponte, baú de tesouro que vira urna funerária, balão que vira pássaro), ou um ator que passa de um papel para outro; qualquer atentado textual ou cênico à lógica corrente do "bom senso" é teatro. O teatro, sabemos há muito, oferece a possibilidade de dizer o que não está em conformidade com o código cultural ou com a lógica social: o que é lógica ou moralmente impensável, ou socialmente escandaloso, o que deveria ser recuperado segundo procedimentos estritos, está no teatro em estado de liberdade, de justaposição contraditória. É por isso que o teatro pode designar o lugar das contradições não resolvidas. (UBERSFELD, 2005, p. 27) 


          Talvez o que mais me apaixone no teatro, entre todas as suas - para mim - irresistíveis qualidades, seja justamente as infinitas possibilidades de se dizer o que se quiser da maneira como se quiser e, concomitantemente (nossos professores adoram esta palavra!), esta maravilhosa abertura, do outro lado, do lado do receptor (espectador, público), de entender o que quer que seja dito à sua maneira particular, de acordo com seu histórico de vida, com as suas experiências, seus conceitos morais... Sua imaginação e o seu momento. Sim, porque cada um de nós pode fazer diferentes leituras de um mesmo trabalho, dependendo do momento pelo qual esteja passando. Na peça Moeda de Quatro Caras, de minha autoria, que estamos montando sob a direção da Ana Alice Müller, as personagens Alma e Diana discutem diferentes pontos de vista sobre o amor e a fidelidade e "as ideias" de uma e da outra são "materializadas" em um lenço, que passa de uma atriz à outra, dependendo da intenção que elas dão de "abraçar" ou "descartar" a ideia (no caso, o pano). Que outra arte nos permite essa magia de transformar um pedaço de pano em ideias?
          Neste mesma peça, abordamos quatro maneiras de ver a vida e encarar relacionamentos a dois. "Quatro lados de uma mesma moeda", que podem ser multiplicados infinitamente, se pensarmos que cada um de nós tem uma maneira peculiar de encará-los. Também "desnudamos" os personagens, um a um, mostrando suas fraquezas, inconstâncias, contradições, seus pensamentos, traumas e desejos, alguns que seriam considerados "moralmente impensáveis ou socialmente escandalosos" e que, portanto, de outra maneira, jamais seriam revelados. O teatro nos possibilita abordar "justaposições contraditórias" e, sobretudo, independentemente de oferecer respostas ou possíveis soluções, é um espaço para lançar questões, que podem ou não levar a reflexões, podem ou não fazer a diferença na vida dos espectadores. E é neste absoluto "estado de liberdade" - liberdade para os criadores do espetáculo, em todos os sentidos (atores, diretores, figuristas, cenógrafos, músicos; iluminadores e todas as suas centenas de escolhas, que farão toda a diferença de uma montagem à outra, ainda que do mesmo texto dramatúrgico); liberdade para os espectadores, de "fazerem com o que estão vendo/sentindo o que bem entenderem. Nada, inclusive, se for esta a sua escolha - que reside sua beleza, seu estado de graça, seu encanto... Sua magia.


          



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